domingo, 28 de junho de 2009

Lenda da Bugiada e da Mouriscada/1ª Feira da Saúde AVVL



* Fotos da actividade "1ª Feira da Saúde AVVL" da autoria da formanda Maria do Carmo Costa. Actividade realizada no mesmo dia que as marchas sanjoaninas do concelho, a que os formandos e formadores deste curso assistiram. Ambas as actividades se desenrolaram no âmbito do Tema de Vida 3 ("Somos Consumidores").


Lenda da Bugiada e da Mouriscada - S. João de Sobrado

Nos tempos em que os Mouros povoavam a Serra de Cuca Macuca, hoje de Santa Justa, em Valongo, e Serra da Pia na encosta entre Valongo e terras de Aguiar de Sousa, o Rei dessa tribo tinha uma filha primogénita que, ao fazer os seus 16 anos de idade, adoeceu gravemente.
O Rei, muito poderoso e abastado, ao ver a princesa desfalecer, tentou por todos os meios ao seu alcance curar a nobre e bonita descendente, procurando os melhores cientistas e curandeiros para obter a cura da idolatrada princesa, mas, nada fazia suster o mal e sofrimento da grave doença.
Perto do seu reino, havia um povo de raça visigoda, que se dedicava aos trabalhos agrícolas e professava a religião cristã, a quem recorria nas suas aflições e pelo qual era sempre atendido.


O Rei mouro, embora incrédulo, ao ouvir falar desses milagres concedidos aos Cristãos, procurou o velho Rei cristão e pediu-lhe para interceder junto do Santo, por sua filha princesa, tudo prometendo para conseguir os seus desejos.
Os Cristãos acederam ao pedido, recorrendo ao seu venerando santo orago e, perante a grande admiração da tribo mourisca, a princesinha retomava a saúde tão desejada, voltando mais bonita que nunca ao seio da sua tribo, para alegria do seu povo e glória de S. João.
O Rei, ufanoso e cheio de autoridade, ordenou grandes festas em honra de S. João, reunindo toda a tribo; convidou os Cristãos a participar nas festas, mandando confeccionar um lauto banquete e no fim o Santo seria levado em majestosa procissão, com o andor conduzido pelos Mouros.
Convencido de que daí em diante toda a força e caprichos das suas resoluções estariam na veneranda imagem, começou a pensar em apoderar-se da mesma chegando a reivindicar essa posse, mas os Cristãos não estavam nessa disposição, logo fazendo ver que não cederiam o Santo milagroso.
Ao iniciar o grande banquete, o Rei mouro fez o pedido formal aos Cristãos, que foi logo recusado.
O Rei mouro, enraivecido e orgulhoso, ordenou que durante o animado banquete os Cristãos fossem humilhados e, assim, deu ordem aos servidores para eles serem servidos em mesa separada.
Os Cristãos, entristecidos e atemorizados, sujeitaram-se às humilhações, mas tomaram parte na festa.
Terminada a grande celebração, o Rei mouro voltou a exigir em tom autoritário e ameaçador, a imediata entrega do Santo, sem qualquer reserva e condição, mas os Cristãos contestaram fortemente essa atitude, o que levou o Rei mouro a ordenar aos seus apaniguados para tomarem pela força a veneranda imagem milagrosa.
Os Cristãos, embora reconhecessem o grande poder físico e guerreiro dos seus adversários e opressores, organizaram-se e prepararam-se para qualquer ataque traiçoeiro, firmes na sua crença inabalável no Santo protector. Pediram a S. João mais um milagre em tão afrontosa situação, pois, sem a sua imagem, não poderiam sobreviver nas suas vicissitudes. Invocando do Santo a protecção para os combates ferozes que teriam de travar com os seus insaciáveis inimigos, logo foram incentivados por forte vontade de lutar até à derrota total dos seus terríveis opositores.
Os Mouros embora valentes guerreiros, eram supersticiosos e, portanto, havia que pensar em certas artimanhas que os pudessem atormentar para que desanimassem. Perto do acampamento cristão havia outra tribo dum povo visigodo, denominada Bugios, que por certas artimanhas e usos macabros, sempre tinham dominado os Mouros e, por isso, os cristãos logo pensaram em imitá-los, para conseguirem o triunfo.
Os Cristãos intitulando-se Bugios, armaram-se de utensílios do seu trabalho de camponeses, disfarçando-se com máscaras hediondas, objectos macabros, guizos e entoando palavras de ordem barulhentas.
Empunhando as poucas armas que possuíam, dirigiram-se com o seu Rei para a ermida do seu Santo protector, implorando auxílio e aspergindo-se com água benta. O troar dos canhões mouriscos começou a ouvir-se e logo os Cristãos, agora Bugios, sobem ao seu castelo, procuram defender-se e intransigentemente resistir ao ataque valente e feroz dos inimigos.
O Rei mouro, numa última tentativa, manda um embaixador a cavalo junto do castelo cristão propondo mais uma vez a entrega, mas não sendo aceite a proposta pelos Bugios, aparecem então os sábios doutores da lei a dar as suas opiniões a favor dos Cristãos.
Nada, porém, susteve a ferocidade mourisca. A luta continuou e os Bugios, não podendo resistir à fúria adversária, violenta e destruidora dos Mouros, nem os seus emissários e doutores nada podendo fazer para melhorar a situação, foram, assim, forçados os Bugios à capitulação.
O imperialista Rei mouro lança-se, com todos os seus apaniguados, sobre o castelo cristão e, depois de o despojar dos bens, prende o rei dos Bugios. Não valendo sequer o pedido de clemência pelos vencidos que, de joelhos, chorando amargamente a sua derrota, pediam a libertação de seu velho Rei, enquanto os doutores da lei, tentavam por todos os meios convencer o orgulhoso vencedor Mouro, da justeza do direito dos oprimidos Cristãos.
O velho Rei Cristão é levado, sob forte escolta, para lugar seguro no reino mouro, enquanto os Cristãos se reorganizam e imploram a S. João mais um milagre: a libertação do seu chefe.
Iluminados e assistidos pelo seu patrono, logo pensaram vencer os mouros pelo medo, e, assim, construíram a figura de uma enorme serpente, denominada SERPE. Empunhando essa hedionda invenção, no meio da maior algazarra, lançaram-se, loucamente para o acampamento mourisco, onde estava prisioneiro o velho Rei da Bugiada.
Os Mouros, ao presenciar tão ruidoso e macabro cortejo, não mais se lembraram do prisioneiro, fugindo espavoridos, e deixarando em paz e liberdade o velho rei dos Bugios, que logo no meio da maior alegria se juntou aos seus libertadores, correndo em direcção à ermida de S. João, entoando as palavras:
- O SANTO É NOSSO!... O SANTO É NOSSO!...
Enquanto ia dançando em agradecimento pelo novo milagre obtido.
Terminada esta grande contenda, os Mouros desistiram de todas as perseguições aos Cristãos, continuando na faina de exploradores de ouro e de outras riquezas.

Fonte: Prospecto “A lenda da Bugiada e da Mouriscada – O S. João de Sobrado, Valongo”, 1986 (texto adaptado).


Actualmente faz-se a reconstituição desta história em Sobrado:

Os Mourisqueiros
Jovens de vestes garridas, os mouriscos constituem um exército de 40 homens comandado pelo Reimoeiro. Para integrar este exército todos os jovens têm de ser solteiros, por tradição. Um exército Mourisco divide-se em Guias, sub-chefes do rei mouro, Rabos que fazem a ligação com os restantes, e os Meios que assumem papel quando os Rabos estão ocupados em outras funções.
Vestir a “pele” de Mourisqueiro é uma honra que só está ao alcance dos que provam competência para o efeito.

Os Bugios
Primorosamente vestidos e bem apetrechados, foliões, os Bugios são o bizarro da festa pelas suas cores e saltos acrobáticos. Os Bugios desfilam mascarados. O comportamento aparentemente violento contrasta com o ordeiro dos Mourisqueiros, gritando e saltando pelo recinto. O exército Bugio é comandado pelo Velho, que se distingue dos demais pelas suas vestes distintas. O exército Bugio não tem limitações, pode ir quem quiser desde os 8 aos 80.

Fonte (texto adaptado): http://chegacheio.com/index.html







Sugestões de Consulta:
http://saojoaodesobrado.blogspot.com/
http://chegacheio.com/index.html

Recolha de Maria do Carmo Costa

Tributo a Fernando Pessoa




Fernando Pessoa nasceu a 13 de Junho de 1888 e faleceu a 30 de Novembro de 1935, em Lisboa, cidade de que sempre gostou muito.

Comemorações do Dia de Camões VI

De quantas graças tinha, a Natureza

De quantas graças tinha, a Natureza
Fez um belo e riquíssimo tesouro,
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angélica beleza.

Pôs na boca os rubis, e na pureza
Do belo rosto as rosas, por quem mouro;
No cabelo o valor do metal louro;
No peito a neve em que a alma tenho acesa.

Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez deles um sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.

Enfim, Senhora, em vossa compostura
Ela a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.

Luís de Camões

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Amor um Mal que Falta quando Cresce

Aquela fera humana que enriquece
A sua presunçosa tirania
Destas minhas entranhas, onde cria
Amor um mal que falta quando cresce;

Se nela o Céu mostrou (como parece)
Quanto mostrar ao mundo pretendia,
Porque de minha vida se injuria?
Porque de minha morte se enobrece?

Ora, enfim, sublimai vossa vitória,
Senhora, com vencer-me e cativar-me;
Fazei dela no mundo larga história.

Pois, por mais que vos veja atormentar-me,
Já me fico logrando desta glória
De ver que tendes tanta de matar-me.


Luís Vaz de Camões


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Pede o desejo, Dama, que vos veja

Pede o desejo, Dama, que vos veja:
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Só por que nunca falte onde sobeja.

Mas este puro afeto em mim se dana:
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,

Assim meu pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre e humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

Luís de Camões


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Amor, que o gesto humano na alma escreve

Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas a alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor, que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoidece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, em um momento,
De lágrimas de honesta piedade
Lágrimas de imortal contentamento.

Luís de Camões

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Ah! minha Dinamene! Assim deixaste

Ah! minha Dinamene! Assim deixaste
Quem não deixara nunca de querer-te!
Ah! Ninfa minha, já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!

Como já pera sempre te apartaste
De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura Morte
Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!

Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte!
Que pena sentirei que valha tanto,
Que inda tenha por pouco viver triste?

Luís de Camões


Recolha de Paulo Ferreira

Comemorações do Dia de Camões V

Quando o Sol encoberto vai mostrando

Quando o Sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
Ao longo de ũa praia deleitosa
Vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi, os cabelos concertando;
Ali, co'a mão na face tão, formosa;
Aqui falando alegre, ali cuidosa;
Agora estando queda, agora andando.

Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos, tão isentos;
Aqui movida um pouco, ali segura.

Aqui se entristeceu, ali se riu.
E, enfim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vã, que sempre dura.

Luís de Camões

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Busque Amor novas artes, novo engenho

Busque Amor novas artes, novo engenho
Pera matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.

Luís de Camões

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Já é tempo, já, que minha confiança

Já é tempo, já, que minha confiança
Se desça duma falsa opinião;
Mas Amor não se rege por razão,
Não posso perder, logo, a esperança.

A vida sim, que uma áspera mudança
Não deixa viver tanto um coração.
E eu só na morte tenho a salvação?
Sim, mas quem a deseja não a alcança.

Forçado é logo que eu espere e viva.
Ah dura lei de Amor, que não consente
Quietação num'alma que é cativa!

Se hei de viver, enfim, forçadamente,
Para que quero a glória fugitiva
Duma esperança vã que me atormente?

Luís de Camões

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Num jardim adornado de verdura

Num jardim adornado de verdura,
Que esmaltavam por cima várias flores,
Entrou um dia a deusa dos amores,
Com a deusa da caça e da espessura.

Diana tomou logo ũa rosa pura,
Vénus um roxo lírio, dos melhores;
Mas excediam muito às outras flores
As violas na graça e formosura.

Perguntam a Cupido, que ali estava,
Qual de aquelas três flores tomaria
Por mais suave e pura, e mais formosa.

Sorrindo-se o menino lhes tornava:
Todas formosas são; mas eu queria
Viola antes que lírio, nem que rosa.

Luís de Camões

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Senhora minha, se de pura inveja

Senhora minha, se de pura inveja
Amor me tolhe a vista delicada,
A cor, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz que o Sol deseja,

Não me pode tolher que vos não veja
Nesta alma, que ele mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada,
Por mais cruel inimigo que me seja.

Nela vos vejo, e vejo que não nasce
Em belo e fresco prado deleitoso
Senão flor que dá cheiro a toda a serra.

Os lírios tendes nu~a e noutra face.
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se há tanto bem na terra!

Luís de Camões

Recolha de Fernando Silva

Dia de Camões IV

Formosos olhos, que na idade nossa

Formosos olhos, que na idade nossa
Mostrais do Céu certíssimos sinais,
Se quereis conhecer quanto possais,
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis que do viver me desapossa
Aquele riso com que a vida dais;
Vereis como de Amor não quero mais,
Por mais que o tempo corra, o dano possa.
E se ver-vos nesta alma, enfim, quiserdes,
Como num claro espelho, ali vereis
Também a vossa, angélica e serena.
Mas eu cuido que, só por me não verdes,
Ver-vos em mim, Senhora, não quereis:
Tanto gosto levais de minha pena!

Luís de Camões

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Cantiga

A este mote alheio:
Menina dos olhos verdes,
porque me não vedes?


Voltas

Eles verdes são,
e têm por usança
na cor, esperança
e nas obras, não.
Vossa condição
não é d'olhos verdes,
porque me não vedes.

Isenções a molhos
que eles dizem terdes,
não são d'olhos verdes,
nem de verdes olhos.
Sirvo de giolhos,
e vós não me credes
porque me não vedes.

Haviam de ser,
porque possa vê-los,
que uns olhos tão belos
não se hão-de esconder;
mas fazeis-me crer
que já não são verdes,
porque me não vedes.

Verdes não o são
no que alcanço deles;
verdes são aqueles
que esperança dão.
Se na condição
está serem verdes,
porque me não vedes?

Luís de Camões

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Erros meus, má fortuna, amor ardente

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís de Camões

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Sempre a Razão vencida foi de Amor

Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!

Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor.

Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.

Luís de Camões

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Descalça vai para a fonte

Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.

Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta.
Chove nela graça tanta,
Que dá graça à fermosura.
Vai fermosa e não segura.

Luís de Camões


Recolha de Maria do Carmo Costa

Comemorações do Dia de Camões III

Todo animal da calma repousava

Todo animal da calma repousava,
Só Liso o ardor dela não sentia;
Que o repouso do fogo, em que ele ardia,
Consistia na Ninfa que buscava.

Os montes parecia que abalava
O triste som das mágoas que dizia:
Mas nada o duro peito comovia,
Que na vontade de outro posto estava.

Cansado já de andar pela espessura,
No tronco de uma faia, por lembrança
Escreve estas palavras de tristeza:

Nunca ponha ninguém sua esperança
Em peito feminil, que de natura
Somente em ser mudável tem firmeza.

Luís de Camões

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O cisne, quando sente ser chegada

O cisne, quando sente ser chegada
A hora que põe termo a sua vida,
Música com voz alta e mui subida
Levanta pela praia inabitada.

Deseja ter a vida prolongada
Chorando do viver a despedida;
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.

Assim, Senhora minha, quando via
O triste fim que davam meus amores,
Estando posto já no extremo fio,

Com mais suave canto e harmonia
Descantei pelos vossos desfavores
La vuestra falsa fé y el amor mio.

Luís de Camões

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Lindo e subtil trançado, que ficaste

Lindo e subtil trançado, que ficaste
Em penhor do remédio que mereço,
Se só contigo, vendo-te, endoudeço,
Que fora co'os cabelos que apertaste?

Aquelas tranças de ouro que ligaste,
Que os raios de sol têm em pouco preço,
Não sei se para engano do que peço,
Ou para me matar as desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
E por satisfação de minhas dores,
Como quem não tem outra, hei de tomar-te.

E se não for contente o meu desejo,
Dir-lhe-ei que, nesta regra dos amores,
Por o todo também se toma a parte.

Luís de Camões


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O dia em que nasci moura e pereça

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

Luís de Camões


Recolha de José António Ferreira

Comemorações do Dia de Camões II

Glosa a mote alheio

Vejo-a na alma pintada,
Quando me pede o desejo
O natural que não vejo.


Se só no ver puramente
Me transformei no que vi,
De vista tão excelente
Mal poderei ser ausente,
Enquanto o não for de mi.
Porque a alma namorada
A traz tão bem debuxada
E a memória tanto voa,
Que, se a não vejo em pessoa,
Vejo-a na alma pintada.

O desejo, que se estende
Ao que menos se concede,
Sobre vós pede e pretende,
Como o doente que pede
O que mais se lhe defende.
Eu, que em ausência vos vejo,
Tenho piedade e pejo
De me ver tão pobre estar,
Que então não tenho que dar,
Quando me pede o desejo.



Como àquele que cegou
É cousa vista e notória,
Que a Natureza ordenou
Que se lhe dobre em memória
O que em vista lhe faltou,
Assim a mim, que não rejo
Os olhos ao que desejo,
Na memória e na firmeza
Me concede a Natureza
O natural que não vejo.

Luís de Camões

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Um mover de olhos, brando e piedoso

Um mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Uma pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento;

Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

Luís de Camões


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Em Amor não há Senão Enganos

Suspiros inflamados que cantais
A tristeza com que eu vivi tão cedo;
Eu morro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Leteo vos percais.

Escritos para sempre já ficais
Onde vos mostrarão todos co'o dedo,
Como exemplo de males; e eu concedo
Que para aviso de outros estejais.

Em quem, pois, virdes largas esperanças
De Amor e da Fortuna (cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças),

Dizei-lhe que os servistes muitos anos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E que em Amor não há senão enganos.


Luís Vaz de Camões

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Ditoso seja aquele que somente

Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando absente,
Não sente mais que a pena das lembranças,
Porque, inda mais que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.

Mas triste de quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.

Luís de Camões

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Grão tempo há já que soube da Ventura

Grão tempo há já que soube da Ventura
A vida que me tinha destinada,
Que a longa experiência da passada
Me dava claro indício da futura.

Amor fero e cruel, Fortuna escura,
Bem tendes vossa força exprimentada;
Assolai, destruí, não fique nada;
Vingai-vos desta vida, que inda dura.

Soube Amor da Ventura que a não tinha,
E por que mais sentisse a falta dela,
De imagens impossíveis me mantinha.

Mas vós, Senhora, pois que minha estrela
Não foi melhor, vivei nesta alma minha,
Que não tem a Fortuna poder nela.

Luís de Camões


Recolha de Augusto Silva

Comemorações do Dia de Camões I

Não passes, caminhante

− Não passes, caminhante! − Quem me chama?
− Ũa memória nova e nunca ouvida,
De um que trocou finita e humana vida
Por divina, infinita e clara fama.
− Quem é que tão gentil louvor derrama?
− Quem derramar seu sangue não duvida
Por seguir a bandeira esclarecida
De um capitão de Cristo, que mais ama.
− Ditoso fim, ditoso sacrifício,
Que a Deus se fez e ao mundo juntamente!
Apregoando direi tão alta sorte.
− Mais poderás contar a toda a gente
Que sempre deu na vida claro indício
De vir a merecer tão santa morte.

Luís de Camões


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Quem diz que Amor é falso ou enganoso

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce, e é piedoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de Amor;
Todos os seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.

Luís de Camões

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Se as penas com que Amor tão mal me trata

Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permitirem que eu tanto viva delas,
Que veja escuro o lume das estrelas,
Em cuja vista o meu se acende e mata;

E se o tempo, que tudo desbarata
Secar as frescas rosas sem colhê-las,
Mostrando a linda cor das tranças belas
Mudada de ouro fino em bela prata;

Vereis, Senhora, então também mudado
O pensamento e aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,
Em tempo quando executar-se possa
Em vosso arrepender minha vingança.

Luís de Camões

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Quando de minhas mágoas a comprida

Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquela alma me aparece
Que pera mim foi sonho nesta vida.

Lá nu~a saudade, onde estendida
A vista pelo campo desfalece,
Corro pera ela; e ela então parece
Que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: - Não me fujais, sombra benina! -
Ela, os olhos em mim c'um brando pejo,
Como quem diz que já não pode ser,

Torna a fugir-me; e eu gritando: - Dina...
Antes que diga: - mene, acordo, e vejo
Que nem um breve engano posso ter.

Luís de Camões

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Verdes são os campos

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

Luís de Camões


Recolha de Ana Cidália Pereira




Fotos de Maria do Carmo Costa - Exposição temática inserida nas Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.