Lembrava-se dele e, por amor, ainda que pensasse
em serpente, diria apenas arabesco; e esconderia
na saia a mordedura quente, a ferida, e marca
de todos os enganos, faria quase tudo
Por amor: daria o sono e o sangue, a casa e a alegria,
E guardaria calados fantasmas do medo, que são
os donos das maiores verdades. Já de outra vez mentira
e por amor haveria de sentar-se à mesa dele
e negar que o amava, porque amá-lo era um engano
ainda maior do que mentir-lhe e, por amor, punha-se
a desenhar o tempo como uma linha tonta, sempre
a cair da folha, a prolongar o desencontro.
E fazia estrelas, ainda que pensasse em cruzes;
arabescos, ainda que só se lembrasse de serpentes.
Pedreira, Maria do Rosário in Cem Poemas Portugueses no Feminino - Fanha, José e Letria, José Jorge(org.). Cascais: Ed. Terramar, 2005, pp. 203-204.
Recolha de Fernando Silva
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
quinta-feira, 7 de maio de 2009
"Aviso Para Solteiros Que Quiserem Viver", Tomás Pinto Brandão
Todo o solteiro que este mundo logra
E por casado assezoado berra
Considere que peste, fome e guerra
O diabo lhe dá em dar-lhe sogra.
A doce liberdade se malogra
De todo o paraíso se desterra,
E de viver enfim os termos erra,
Porque em vida se se enterra se se ensogra.
Terá sogra ab initio et ante bruxa,
Terá sogra ad perpectuam rei tarascia,
Sogra per omnia secula proluxa;
Que é peste no contágio que lhe encasca,
É fome na miséria que lhe embuxa,
É guerra no dragão que lhe enfrasca.
Tomás Pinto Brandão in Cem Poemas Portugueses do Riso e do Maldizer - Fanha, José e Letria, José Jorge(org.). Cascais: Ed. Terramar, 2003.
Recolha de Rosário Sousa
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
E por casado assezoado berra
Considere que peste, fome e guerra
O diabo lhe dá em dar-lhe sogra.
A doce liberdade se malogra
De todo o paraíso se desterra,
E de viver enfim os termos erra,
Porque em vida se se enterra se se ensogra.
Terá sogra ab initio et ante bruxa,
Terá sogra ad perpectuam rei tarascia,
Sogra per omnia secula proluxa;
Que é peste no contágio que lhe encasca,
É fome na miséria que lhe embuxa,
É guerra no dragão que lhe enfrasca.
Tomás Pinto Brandão in Cem Poemas Portugueses do Riso e do Maldizer - Fanha, José e Letria, José Jorge(org.). Cascais: Ed. Terramar, 2003.
Recolha de Rosário Sousa
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
Etiquetas:
Escárnio,
Literatura Portuguesa,
Poesia,
Poeta Português,
Tomás Pinto Brandão
"Homem", Sophia de Mello Breyner Andresen
Era uma tarde do fim de Novembro, já
sem nenhum Outono.
A cidade erguia as suas paredes de pedras escuras. O céu estava alto, desolado,cor de frio. OS homens caminhavam empurrando-se uns aos outros nos passeios. Os carros passavam depressa.
Deviam ser quatro horas da tarde dum
dia sem sol nem chuva.
Havia muita gente na rua naquele dia.
Eu caminhava no passeio, depressa. A certa altura encontrei-me atrás dum homem muito pobremente vestido que levava ao colo uma criança loira, uma daquelas crianças cuja beleza quase não se pode descrever. É a beleza de uma madrugada de Verão, a beleza duma rosa, a beleza do orvalho, unidas à incrível beleza duma inocência humana.
Andresen,Sophia de Mello Breyner , O Homem in "Contos Exemplares".Lisboa: Contemporânea/Portugália Ed., s/d, pp.153-154
Recolha de Ana Cidália Pereira
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
sem nenhum Outono.
A cidade erguia as suas paredes de pedras escuras. O céu estava alto, desolado,cor de frio. OS homens caminhavam empurrando-se uns aos outros nos passeios. Os carros passavam depressa.
Deviam ser quatro horas da tarde dum
dia sem sol nem chuva.
Havia muita gente na rua naquele dia.
Eu caminhava no passeio, depressa. A certa altura encontrei-me atrás dum homem muito pobremente vestido que levava ao colo uma criança loira, uma daquelas crianças cuja beleza quase não se pode descrever. É a beleza de uma madrugada de Verão, a beleza duma rosa, a beleza do orvalho, unidas à incrível beleza duma inocência humana.
Andresen,Sophia de Mello Breyner , O Homem in "Contos Exemplares".Lisboa: Contemporânea/Portugália Ed., s/d, pp.153-154
Recolha de Ana Cidália Pereira
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
"LENGA-LENGA", Sebastião da Gama
7/10/1946
Não quero ser teu mais constante
pensamento.
Nem sequer,meu Amor!,teu sentimento
mais instante.
Basta-me ser,
a certas horas de certos dias,
o Sol que vai tuas mãos frias
aquecer.
Basta-me ser,a certas horas,
quando,subtil,a Mágoa vem,
aquela lágrima que choras
e te faz bem.
Basta-me ser aquele nome
naquela carta daquela tarde
em que tu tinhas sede e fome
de que eu viesse acompanhar-te.
(Se eu, meu Amor!,não fosse vivo,
quem sabe lá se existiria
a tua cândida alegria
que é sem princípio e sem motivo?...)
(excerto)
Gama, Sebastião da , "Cabo da Boa Esperança".
Mem Martins: Edições Arrábida, 2007,p.104
Recolha de Augusto Silva
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
Não quero ser teu mais constante
pensamento.
Nem sequer,meu Amor!,teu sentimento
mais instante.
Basta-me ser,
a certas horas de certos dias,
o Sol que vai tuas mãos frias
aquecer.
Basta-me ser,a certas horas,
quando,subtil,a Mágoa vem,
aquela lágrima que choras
e te faz bem.
Basta-me ser aquele nome
naquela carta daquela tarde
em que tu tinhas sede e fome
de que eu viesse acompanhar-te.
(Se eu, meu Amor!,não fosse vivo,
quem sabe lá se existiria
a tua cândida alegria
que é sem princípio e sem motivo?...)
(excerto)
Gama, Sebastião da , "Cabo da Boa Esperança".
Mem Martins: Edições Arrábida, 2007,p.104
Recolha de Augusto Silva
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
Etiquetas:
Literatura Portuguesa,
Poesia,
Poeta Português,
Sebastião da Gama,
Sentimentos
"Davam grandes passeios aos Domingos", José Régio
II
Grande amor? Um pouco mais devagar.Ao fim de meses em Portalegre e em casa de sua tia Alice, achava Rosa Maria que o primo Fernando era simplesmente a pessoa mais divertida da casa. Ora sê-lo não implicava extraordinárias vantagens pessoais. Todas as outras eram, talvez, mais interessantes;e pela certa mais importantes, ou mais distintas;ou mais sérias... Precisamente por isso; menos divertidas na desautorizada opinião de Rosa Maria. Significará isto que Rosa Maria fosse uma rapariga fútil? Aguardemos os acontecimentos.
O caso é ter cada pessoa da casa um papel que certas conveniências ou circunstâncias lhe haviam distribuído, e cada pessoa desempenhava o mais escrupulosamente possível.
Régio, José , "Davam grandes passeios ao domingo", Lisboa: Livros Unibolso, s/d, p.17
Recolha de Paulo Ferreira
* Obra do acervo da Biblioteca desta escola
Grande amor? Um pouco mais devagar.Ao fim de meses em Portalegre e em casa de sua tia Alice, achava Rosa Maria que o primo Fernando era simplesmente a pessoa mais divertida da casa. Ora sê-lo não implicava extraordinárias vantagens pessoais. Todas as outras eram, talvez, mais interessantes;e pela certa mais importantes, ou mais distintas;ou mais sérias... Precisamente por isso; menos divertidas na desautorizada opinião de Rosa Maria. Significará isto que Rosa Maria fosse uma rapariga fútil? Aguardemos os acontecimentos.
O caso é ter cada pessoa da casa um papel que certas conveniências ou circunstâncias lhe haviam distribuído, e cada pessoa desempenhava o mais escrupulosamente possível.
Régio, José , "Davam grandes passeios ao domingo", Lisboa: Livros Unibolso, s/d, p.17
Recolha de Paulo Ferreira
* Obra do acervo da Biblioteca desta escola
Etiquetas:
Atitudes,
Escritor Português,
José Régio,
Literatura Portuguesa,
Sentimentos
Quem Tem Farelos?(Excerto), Gil Vicente
Velha:
Rogo à Virgem Maria,
Que quem me fez erguer da cama,
que má cama e má dama,
e má lama negra e fria.
Má mazela e má courela,
mau regato e mau ribeiro,
mau silvado e mau outeiro,
má carreira e má portela.
Mau cortiço e mau sumiço,
maus lobos e maus lagartos,
nunca de pão sejam fartos!
Mau criado, mau serviço,
má montanha, má companha,
má aranha, má pousada,
má achada,má entrada,
má aranha, má façanha.
Má escrença, má doença,
má doairo, má fadairo,
mau vigairo,mau trintairo,
má demanda,má sentença,
mau amigo e mau abrigo,
mau vinho e mau vizinho,
mau meirinho e mau caminho,
mau trigo e mau castigo.
Irá de monte e de fonte,
irá de serpe de drago,
perigo de dia aziago
em rio de monte a monte,
má morte, má corte, má sorte,
má dado,má fado, má prado,
mau criado, mau mandado,
mau conforto te conforte.
Rogo às dores de Deus,
que má caída lhe caia,
e má saída lhe saia
trama lhe venha dos céus.
Jesu! Que escuro que faz!
Ó mártere San Sandorninho!
Que má rua e má caminho!
Cego seja quem m'isto faz!
Ui! Amara, percudida!
Jesú,a que m'eu encandeio!
Esta praga donde veio?
Deus lhe apare negra vida!
Vicente, Gil in Cem Poemas Portugueses do Riso e do Maldizer - Fanha, José e Letria, José Jorge(org.). Cascais: Ed. Terramar, 2003, pp.15-17.
Recolha de José António Ferreira
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
Rogo à Virgem Maria,
Que quem me fez erguer da cama,
que má cama e má dama,
e má lama negra e fria.
Má mazela e má courela,
mau regato e mau ribeiro,
mau silvado e mau outeiro,
má carreira e má portela.
Mau cortiço e mau sumiço,
maus lobos e maus lagartos,
nunca de pão sejam fartos!
Mau criado, mau serviço,
má montanha, má companha,
má aranha, má pousada,
má achada,má entrada,
má aranha, má façanha.
Má escrença, má doença,
má doairo, má fadairo,
mau vigairo,mau trintairo,
má demanda,má sentença,
mau amigo e mau abrigo,
mau vinho e mau vizinho,
mau meirinho e mau caminho,
mau trigo e mau castigo.
Irá de monte e de fonte,
irá de serpe de drago,
perigo de dia aziago
em rio de monte a monte,
má morte, má corte, má sorte,
má dado,má fado, má prado,
mau criado, mau mandado,
mau conforto te conforte.
Rogo às dores de Deus,
que má caída lhe caia,
e má saída lhe saia
trama lhe venha dos céus.
Jesu! Que escuro que faz!
Ó mártere San Sandorninho!
Que má rua e má caminho!
Cego seja quem m'isto faz!
Ui! Amara, percudida!
Jesú,a que m'eu encandeio!
Esta praga donde veio?
Deus lhe apare negra vida!
Vicente, Gil in Cem Poemas Portugueses do Riso e do Maldizer - Fanha, José e Letria, José Jorge(org.). Cascais: Ed. Terramar, 2003, pp.15-17.
Recolha de José António Ferreira
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
Etiquetas:
Escárnio,
Escritor Português,
Gil Vicente,
Literatura Portuguesa,
Poesia,
Sentimentos
Liberdade, Fernando Pessoa
Ai que prazer.
Não cumpir um dever.
Ter um livro para ler.
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
de tão naturalmente matinal,
como tem tempo
não tem pressa...
Livros são papeis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta.
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
Pessoa, Fernando in Cem Poemas Portugueses do Riso e do Maldizer - Fanha, José e Letria, José Jorge(org.). Cascais: Ed. Terramar, 2003.
Recolha de Rosário Sousa
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
Não cumpir um dever.
Ter um livro para ler.
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
de tão naturalmente matinal,
como tem tempo
não tem pressa...
Livros são papeis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta.
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
Pessoa, Fernando in Cem Poemas Portugueses do Riso e do Maldizer - Fanha, José e Letria, José Jorge(org.). Cascais: Ed. Terramar, 2003.
Recolha de Rosário Sousa
*Obra do acervo da Biblioteca desta escola
Etiquetas:
Fernando Pessoa,
Liberdade,
Literatura Portuguesa,
Poesia,
Poeta Português
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